Livro dos medos.
Texto de Adélia carvalho
Ilustrações de Marta Madureira
Livro dos medos.
Texto de Adélia carvalho
Ilustrações de Marta Madureira
— Carolina, já és uma menina crescida. Tens de dormir sozinha.
— Mas, mama, eu tenho medo!
— Tens medo de quê?
— Tenho medo de coisas estrábicas.
— Coisas estrábicas?
— Sim, coisas que não são normais.
— Ah, queres dizer coisas estranhas.
— Sim, coisas como o Martim-Sem-Dentes.
— Mas o Martim-Sem-Dentes não existe. Isso é um disparate, Carolina!
— Existe, existe, eu já o vi! E também tenho medo do Paf-Tim-Bum.
— Paf-Tim-Bum...Mas o que é isso?
— Não sei, mas o João diz que já viu um, e era assustador.
— Carolina, não podes ter medo.Olha, as portas e as janelas estão fechadas, ninguém consegue entrar aqui; e a mãe e o pai estão cá para te proteger.
— Mas, mamã, não sabes que eles conseguem passar pelas paredes e pelas janelas? E às vezes até se escondem nas gavetas, e debaixo da cama. Esperam que eu esteja sozinha e aparecem logo para me assustar.
— Isso são medos da tua imaginação. Só existem porque tu pensa neles. Por isso, se não pensares, eles deixam de existir.
Eu vou ficar aqui um pouquinho, para veres que não há nada capaz de passar pelas paredes e janelas, mas depois vou para a minha cama. Não podes ter medo. Eu também não tenho.
— Pois, tu não tens medo porque tens o papá para te proteger. Tu não dormes sozinha. E não acredito que não tenhas medo. Toda a gente tem, todos os meus amigos têm. A Maria tem medo da bestalhuda, que é um animal muito esquisito com umas orelhas muito grandes, que lhe faz cócegas nos dentes. A Inês tem medo do bicho-papão, que adora cantar e comer sabão.
O António tem medo que apareça uma bana e o atire para debaixo da cama.
A Mariana tem medo daqueles morcegos que dão gargalhadas e nos pintam os dedos. O João tem medo do mosquito cabeçudo, com patas de elefante e nariz de texugo. O André tem medo do pato marreco, que salta e cheira a chulé. A Francisca tem medo do peixe voador, que espirra e lhe come o cobertor. A Rita tem medo da baleia com asas de borboleta, que chora muito e só quer a chupeta. O Pedro tem medo do gato chanfrado, que mia gargalhadas quando está zangado.
— Isso, são medos mesmo muito engraçados, Carolina. Espera, tens razão, eu também tenho medo.
— A sério, de que?
— Tenho medo de me esquecer de coisas importantes ou até de coisas que não são muito importantes, tenho medo de ter medo, tenho medo de que deixes de gostar de mim.
— Mas, mamã, isso é um disparate, claro que eu nunca vou deixar de gostar de ti. Vou sempre gostar de ti até ao infinito.
Bicho o bichão.
— Vês, Carolina, também achas que os meus medos são um disparate; e, mesmo assim, eu continuo com medo.
— Mamã, eu juro que nunca vou deixar de gostar de ti.
— E eu juro que o Martim-Sem-Dentes não está debaixo da tua cama porque simplesmente não existe.
— Mas eu continuo com um bocadinho de medo. Ficas aqui comigo só mais uns minutos, até passar?
— Já sei, vamos buscar folhas de papel e lápis, desenhamos os nossos medos e assim eles ficam lá presos e nunca mais podem sair; e nós deixamos de ter medo dos nossos medos.
E, enquanto desenhamos, podemos dizer aquela lengalenga que a minha avó me ensinou:
Bicho, bichão,
Bicho-papão,
Aranha, aranhão,
Sapo, sapão,
E bichos de toda a nação,
Sai daqui,
Que anda lume atrás de ti.
Sim, vou desenhar o Martim-Sem-Dentes e todos os medos dos meus amigos. Vou desenhar ainda uma caixa e metê-los lá dentro; assim é mais seguro.